quinta-feira, 9 de abril de 2015

Integridade e singularidade

Jennifer Lopez traz em seu livro - True Love - um conceito que gosto muito para a palavra integridade: "Integridade é a sua medida do que é certo". Embora certo e errado sejam conceitos que por vezes signifiquem uma visão maniqueísta das coisas, nesse caso é algo positivo. "A sua medida do que é certo" representa exatamente isso: a sua medida. Aquilo que você considera adequado e bom, conforme os seus princípios. E quando conseguimos aplicar esse conceito de integridade em cada parte das nossas vidas, as coisas começam a mudar. E inicia pela mudança da visão sobre nós mesmos.
A integridade é na verdade um conjunto de coisas. Sentimentos, reações, condutas, atitudes. Parece algo complexo, mas que pode ser facilmente compreendido em uma única frase: "o que eu não acho certo que o meu melhor amigo aceite na vida dele eu também não posso aceitar na minha". (Aqui em melhor amigo, você pode substituir por mãe, pai, irmão ou qualquer pessoa que você realmente ame muito).
Ou seja, se eu não acho certo que o meu melhor amigo fique em um emprego onde seu chefe seja agressivo e o trate com gritos, eu não posso aceitar que façam isso comigo. Se eu não acho certo que o meu melhor amigo fique "preso" em uma relação emocionalmente dolorosa eu também não posso aceitar isso pra mim.
É uma questão de estima. Você estima o seu melhor amigo (ou a pessoa que você citar na frase acima) de uma determinada forma, mas geralmente não estima a si mesmo da mesma forma, por isso é importante essa comparação.
O problema é que normalmente nós vivemos confortavelmente em um "modo automático" e só descobrimos aquilo que realmente queremos quando surge o contraste com aquilo que não queremos. E só percebemos que não queremos alguma coisa quando ela passa a nos fazer mal. Inicialmente a insatisfação é algo positivo. Significa que você sabe que algo não está confortável. E se algo não está confortável é sinal que existe uma forma de ficar confortável, mesmo que você ainda não saiba exatamente qual é.
Mas por que deixamos as coisas nos fazerem mal? Por que nos colocamos em situações que nos fazem mal? Relacionamentos massacrantes, abusos no trabalho, frustrações e mais um zilhão de coisas negativas?
O mundo não nos incentiva à singularidade. Nós aprendemos desde cedo que precisamos ser compreendidos, acolhidos, aceitos e por isso seguimos padrões. De comportamento, de beleza, de conduta sexual, de medos e principalmente: da falta da perspectiva de sermos mais do que aquilo que dizem que a gente pode ser.
A sociedade nos divide em “caixinhas” e coloca as pessoas dentro da que lhe convém. Faz parte da visão dicotômica que temos das coisas. Nós temos que ter um rotulo simples pra podermos ser julgados, definidos, considerados bons ou maus. Nos dão receitas de sucesso, passos a serem seguidos, pessoas a serem copiadas e no fim nós não passamos disso: cópias de um ideal. Que provavelmente também é cópia de alguém ou alguma outra coisa. Mas a consciência (aquele negócio que fica dizendo que a gente tá errado, tá feio, é burro, ou não é bom o bastante) é implacável. Ou você cumpre o que ela tem por ideal ou ela te condena ao mais primitivo dos castigos: a culpa.
O mundo também não nos ensina a perdoar as nossas próprias falhas (ou erros, chamem como quiserem, eu não gosto de nenhuma dessas palavras). Mas você precisa ser suficientemente altruísta pra perdoar o outro, mesmo sem saber perdoar a si próprio.
O que nós fazemos é sempre o melhor que conseguimos fazer com o conhecimento e a habilidade que temos naquele momento. Se cinco minutos depois você agiria diferente, bem, são cinco minutos de aprendizado que você não teve antes e em cinco minutos se aprende muita coisa sobre a vida. É um conhecimento que veio depois da atitude e que até então você não possuía. E você não pode cobrar de si mesmo algo que não sabe.
Mas isso, além da integridade e estima, tem a ver com outro conceito: o de amor próprio.
O fato é que dificilmente a gente aprende a amar a si mesmo. Desde pequenos, todos os ensinamentos que temos, a começar pela religião, trazem a ideia (ou o mandamento) de "amar aproximo como a ti mesmo". Mas, assim como perdoar, se você não aprendeu a amar a si mesmo como pode realmente amar alguém?
Amor perdoa, abraça, acolhe, ensina, fortalece, exalta conquistas, tira lições dos erros (que palavra feia)... Amor é doce, gentil, carinhoso. Você é amoroso consigo mesmo?
Esse é o ponto principal. Quando você realmente se ama passa a se tratar de forma diferente. Você se quer bem, quer se fazer bem. Escolhe companhias e lugares que fazem bem. Escolhe cuidar do seu corpo e da sua mente, seja lá com o que você considerar que faça bem para ambos. Aprende a se criticar de forma amorosa e construtiva.
E a consequência disso tudo serão relações de trabalho melhores, relacionamentos melhores, amizades melhores, condições de vida melhores... Porque quando você aprende a ter amor e respeito por si mesmo, aprende também a ter pelos outros e os reflexos disso vão pra todas as áreas da sua vida.
O mundo é um infinito de possibilidades. Atreva-se a explorar a própria singularidade e descobrir quais as que mais te agradam. Atreva-se a ser você mesmo. Descubra a sua essência. Nunca, jamais deixe que a mente limitada de outras pessoas guie os seus passos ou diga o que você pode ou não ser. E por último, não procure nas pessoas o amor, a aceitação e a aprovação que você pode dar a si mesmo. É uma proposta de mudança, não uma receita. É só mais uma das possibilidades. Você pode escolher segui-la ou continuar na possibilidade atual, com a perspectiva atual, com as atitudes atuais e obviamente, com os resultados atuais. Muitos dos acontecimentos da nossa vida não dependem apenas de nós. Mas quanto mais nos responsabilizamos e entendemos o nosso poder de decisão, mais conscientes e plenos vivemos.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Do chorume ao pão e circo



Se a idéia de todas as postagens pós-jogo era mostrar o quanto a nossa educação é precária e não ensina a pensar ou a interpretar fatos, então o objetivo foi alcançado com sucesso.
E isso fica ainda mais claro, por exemplo, quando você compara o MASSACRE que foi o holocausto com cerca de 6 MILHÕES de pessoas exterminadas, sendo pelo menos 1 MILHÃO de CRIANÇAS, em toda a dor e sofrimento que causou, com uma goleada em um jogo de futebol.
Fica claro que a nossa educação é precária quando também não conseguimos nos livrar do anacronismo da lógica infantil onde só existe herói e anti-herói e só se pode ser uma coisa ou outra. Quando não entendemos que existe espaço pra compreender, se preocupar e lutar por questões sociais e também torcer pela seleção brasileira sem que isso signifique adoração pela política do pão e circo. Mas a nossa síndrome de vira-lata e complexo de inferioridade é tão grande que nos obriga a encaixar de forma diminutiva tudo aquilo que é manifestação popular.
Precisamos evoluir e muito em questões econômicas, sociais, estruturais e isso é inegável, mas uma coisa não anula a outra.
Eu, que nunca acompanhei muito o futebol, nem nunca fui um grande fã, torci em todos os jogos e também me entristeci com a derrota, mas consigo entender que aquilo foi um jogo e como tal, podia ter um resultado positivo ou negativo. Dizer que nós "aprendemos que não se ganha nada com o jeitinho brasileiro" (como tem um texto rolando por aí) é subestimar a competência de PROFISSIONAIS que estão entre os melhores esportistas / técnicos / preparadores do mundo. Ficar feliz porque o Brasil perdeu e esperar que isso, por si só, impacte na melhoria do país é de uma bobagem tão grande que chega a dar uma ponta de vergonha alheia.
E outra, pelo menos 80% das pessoas que afirmam que alguma coisa "é só no Brasil" nunca conheceu outro país ou se deu ao trabalho de fazer uma pesquisa fora da Wikipédia para conhecer outra realidade. (Ter ido fazer compras em Riveira ou no Paraguai não conta, gente).
Quantos de vocês que tanto criticam a copa ou que dizem que a reação será nas urnas perdeu pouco do seu precioso tempo pra ler sobre os Planos de Governo apresentados pelos candidatos a presidência na próxima eleição? Ou quantos sabem quais são as responsabilidades municipais, estaduais ou federais pra saber de quem cobrar?
Lembro que em outras copas falava-se muito que éramos "tantos" milhões de técnicos gritando de casa orientando a seleção embasados no conhecimento popular. Vi tantas relações sem pé nem cabeça sobre política-futebol feitas hoje aqui, que a única conclusão é de que, de repente, viramos "tantos" milhões de analistas políticos e passamos a dar todo o tipo de opinião esdrúxula embasados no mesmo conhecimento popular. E por fim, provamos novamente que entendemos muito mais do primeiro assunto.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

A incrível geração de gente que tem a mesma mentalidade dos anos 20, mas hoje tem smartphone.

Em menos de uma semana uma cachoeira de chorume invadiu as redes sociais buscando basicamente encontrar razões para entender por que as mulheres continuam solteiras.
A culpa é sempre do outro. Ou sempre da gente. Sempre tem culpa. E há culpa por não ter relacionamento! Há culpa por não ter relacionamento?

E aí surge um, outro, mais um e mais outro texto escrito por uma mulher sobre mulheres independentes que – talvez só as autoras não tenham percebido – falam de como dependem totalmente de "desencalhar" pra se sentirem completas.

(Não acho justo tratar somente como mulheres, visto que os homens querem tanto quanto ou mais. A questão de tratar o relacionamento como prêmio, benção ou dádiva não é mérito somente delas. E você, amiguinho homem que acha que estou falando bobagem, tem como dever de casa tentar dia a dia ser mais sincero com você mesmo).

Entre tudo isso, a dúvida que tenho é: Será que a gente é tão pouco assim pra considerar como o momento máximo das NOSSAS vidas somente aquele que é dividido com outra pessoa?

Não tem problema nenhum em você querer um relacionamento. Mas também não tem problema nenhum em você NÃO QUERER um. O problema está no fato da sua felicidade DEPENDER disso. Ou em se cobrar a postura segura e convicta de que não precisa de relacionamento para ser feliz.
E aí fala-se tanto em como os relacionamentos são descartáveis em tempos de Tinder, na geração de pessoas assim ou assado, etc. Será que não tem nada, nadinha a ver com o fato de colocarmos os relacionamentos num pedestal? No fato de considerarmos que a responsabilidade da nossa felicidade está na mão de outra pessoa? De sermos inseguros (e considerarmos essa insegurança como desvirtude) a ponto de tentar preencher esse espaço com alguém que “nos completa”? Será que a gente realmente considerava melhor no tempo em que as pessoas casavam por convenção (ou obrigação) e tinham que permanecer casados até o final da vida porque a cultura da época era essa? “Ah, mas meu avô...” Seu avô e sua avó talvez fossem uma exceção. Quantos outros casais da época tem todo esse relato de felicidade? “Ah, mas no tempo da minha avó as pessoas se esforçavam mais...”. Sim, visto não tinham outra opção. E também toleravam traições constantes, se desgastavam mais e tinham uma vida frustrada e infeliz.

Os tempos são outros. As pessoas tem outros parâmetros, outros interesses. E – graças a Deus – Existe liberdade pra gente não ter que ficar onde a gente não quer ficar. Não existe receita pra duas pessoas darem certo pro resto da vida. Se existisse, não tinha mais gente solteira no mundo. Ou teria, vai saber...

Deixa rolar, gente. Se gostem. Se curtam. Curtam a própria companhia. Se amem. É clichê? É. Mas o que na vida não é?

E mais: quem foi que disse que a gente tem que saber tudo e ser sempre seguro de si? A gente erra, se frustra e isso não mata ninguém.

Cada fase da vida é única e o que mata mesmo é quando a gente não sabe se respeitar, respeitar cada uma delas e principalmente respeitar a própria história. A gente é o somatório de muita coisa pra ficar bitolado em uma única situação.

Estar apaixonado é ótimo. Ser correspondido então, nem se fala. Estar com quem a gente ama não tem preço. Mas considerar isso como “TUDO” é desconsiderar a nossa própria capacidade de ser mais do que um eterno adolescente desesperado e despreparado para a vida.

Tenho medos? Muitos. E tomara que eu os tenha por toda a vida.

Gosto de alguém? Sim, muito!

Dói quando a gente não é correspondido? Sim.

Vou morrer? Sim. Um dia todo mundo vai, mas não vai ser por causa de um amor não correspondido.

Eu entendo muito bem o quanto isso mexe com a gente, o quanto isso nos afeta e pode derrubar. Mas dá pra reagir diferente. Aliás, aprender a reagir de forma menos adolescente às coisas é uma das dádivas que o tempo nos traz. A gente fica menos imediatista, mais paciente, mais sereno...

A verdade é que a gente é criado com a mentalidade da dualidade. De que só existe bom e ruim. De que ou é preto ou é branco. De que número par é a lei. De que o Romeu era a alma gêmea da Julieta. De que temos almas gêmeas e somos metades. Mas, e se você juntar metade de um quadrado e metade de um círculo, que figura forma?

Algumas vezes, duas metades não são nada além do que duas metades.


domingo, 1 de junho de 2014

Sobre cotas, racismo e carrinhos de picolé




Há algum tempo, contei o resumo de uma história no Facebook sobre uma pessoa que conheci. Hoje, vendo ser repetidamente levantada a bandeira do preconceito disfarçada de luta por igualdade por parte daqueles que nunca sofreram nem um tipo de discriminação, resolvi voltar a essa história.
Por diversas razões, não vou utilizar o nome verdadeiro dessa pessoa, portanto, vamos chamá-la de Maria.

Pois bem, claquete:

Maria é uma mulher negra de 42 anos que trabalha como faxineira (não busquei outro termo propositalmente, pois não vejo vergonha alguma ganhar a vida com tal trabalho, portanto, dispensa-se o eufemismo). Com 8 filhos e 4 netos, Maria sempre sonhou com uma família grande, já que a sua mãe  (também faxineira) teve muitos filhos e que sua infância pobre teve momentos tão bons ao lado de tantos irmãos. Maria teve 4 casamentos e um dos seus ex maridos estava preso por ter violentado uma das filhas.
Maria conta que sua filha mais velha começou a se envolver com drogas muito cedo e que por isso teve de ir buscá-la na delegacia por diversas vezes. Sentiu-se aliviada quando esta engravidou aos 14 anos, pois assim ficaria mais em casa para cuidar do filho, criaria juízo. E em toda essa história contada sorrindo, Maria diz que a sua única tristeza era buscar a filha na delegacia, pois para chegar lá era preciso subir uma ladeira muito íngreme, o que cansava muito.
A filha criou juízo, começou a trabalhar também como faxineira e largou a escola, já que nada do que aprendia lá era útil em sua profissão.

Corta.

Quando eu era pequeno, meu irmão mais velho tinha uma diversão absurda em pentelhar a mim e a minha irmã, assim como a maioria dos irmãos mais velhos faz. Lembro de uma vez em que ele disse que quando eu crescesse mais um pouco, nossos mais me mandariam vender picolé, com aquele carrinho e apito característicos que passa nas ruas de algumas cidades. Lembro que eu chorei muito ao ouvir isso. 

Mas por que uma criança chora ao pensar que o seu futuro seria vender picolé de carrinho na rua? Que sabe uma criança pra saber se isso é bom ou ruim?
De fato, eu não sabia o que tinha de errado em fazer tal trabalho, mas conhecia quem trabalhava vendendo picolé de carrinho na rua e eu definitivamente não queria ser um deles porque quem trabalhava vendendo picolé de carrinho na rua era justamente o pessoal que eu não gostava e que não gostava de mim na escola. Negros. Pobres. De vilas tidas como violentas. Frequentadores assíduos da diretoria. Eu não sabia muito o que representava cada uma dessas coisas, mas ir pra diretoria era algo que eu definitivamente não queria.
Mas o que a história da Maria, os meninos que não gostavam de mim e eu temos em comum? Os parâmetros. Por causa dos parâmetros que ela, os meninos que não gostavam de mim e eu recebemos, nós somos o que somos hoje. Não é unicamente uma questão de escolha, de busca e esforço como a nossa linda e justa sociedade meritocrática prega.
A linha de partida não é a mesma para todos. Por mais que eu tenha começado a trabalhar muito cedo também, tenha tido uma vida que sempre exigiu que eu batalhasse e buscasse oportunidades pra poder estudar e trabalhar, nem de longe a minha história se equipara com a de alguém como Maria. A realidade que alguém constrói para si é completamente dependente da realidade que conhece quando criança, enquanto os seus valores, conceitos e parâmetros são formados. Forma-se uma visão do futuro baseado-se em tudo isso. O ser humano prega que o importante é ser feliz e a felicidade é facilmente confundida com satisfação. As pessoas vivem - em sua maioria - insatisfeitas, porém felizes. E porque alguém vai buscar algo além do que o que fez os seus pais ou suas pessoas referenciais felizes?
Mas ai eu vejo o pessoal criticando o sistema de cotas, o bolsa-família e outros programas de assistência social com tanta propriedade quanto eu sobre regras do futebol. A parte engraçada é que a maioria do pessoal que diz que "é só no Brasil" nunca viajou pra outro país. Assim como a maioria do pessoal que diz que "pobre faz bastante filho pra garantir o bolsa-família" (acreditem, já ouvi isso) não faz ideia de como o benefício funciona. E assim como todos que criticam tudo isso adoram fazer um "acordo" com o patrão pra poder sacar fundo de garantia e seguro-desemprego, que também são benefícios sociais, caso não saibam. Mas como benefício social só é errado quando é para os outros...
Outro dia vi na no Facebook de uma amiga, um sujeito falando que já que existem cotas para negros, deveria existir cotas para descendentes de alemães e italianos, já que vieram preencher essa "lacuna".
Escravidão não é, nem deveria ter sido um mercado, pra início de conversa. Outro ponto é que os descendentes de alemães e italianos (aos quais minha família faz parte, inclusive), nunca foram obrigados a sair de seus países e virem para o Brasil. Em muitos casos foram enganados? Sim, mas nunca tratados como mercadorias, tampouco chibatados por qualquer razão. Outrossim, quantas famílias descendentes de escravos você conhece que hoje tem uma condição financeira razoavelmente boa? Fazendo um comparativo com as famílias descendentes de alemães e italianos, lhe parece algo justo? Lhe parece que o preconceito foi esquecido? Lhe parece que é um problema histórico que só está no passado e não reflete a realidade atual, onde 50,7% da população se declara negra?


O sistema de cotas, tanto em instituições de ensino superior, quanto em concursos públicos, visa cumprir o papel social de mostrar que existe espaço pra todos. Que não é porque uma pessoa é parda ou negra que ela não pode fazer algo. É pra que pessoas como a Maria ou seus filhos vejam que é possível vislumbrar uma realidade diferente.
O absurdo está em ainda precisarmos disso. Em ainda haver preconceito. Em alguém ainda pensar que não pode ser qualquer coisa porque a sociedade não aceita.
O busílis é que qualquer benefício social deveria ser provisório e outras medidas deveriam ser tomadas para que realmente fossem alternativas paliativas e não de forma permanente ou eleitoreira.
Permitir o empoderamento da população parda e negra é mais do que uma reparação aos fatos históricos. É passo fundamental para uma maior igualdade socioeconômica.
Volto a dizer: não é por conta de alguns casos que você conhece de negros bem sucedidos que não existe racismo. E definitivamente, não será uma hashtag e uma foto comendo banana que vai acabar com ele.
E um conselho: conheçam outras realidades. Saiam de suas confortáveis bolhas antes de falar que todos são iguais, porque a caminhada rumo a igualdade ainda está só começando.

domingo, 18 de maio de 2014

Gente do bem!

Impossível passar os últimos dias sem homenagear toda essa gente que curte TV Revolta no Facebook e elegeria fácil o Bolsonaro e a Sheherazade pra presidente e vice, respectivamente. 

Ah, essa gente linda e do bem...

Gente do bem vive a vida sem interesses e acredita piamente que tudo é questão de mérito. Inclusive o fato de ter nascido branco, de ser heterossexual, de ter tido uma boa formação familiar, ser magro(a) e ter parâmetros que levem a buscar por educação, oportunidades, trabalho, etc. E obviamente, acha que sistemas te cotas, bolsa-família e outros programas assistencialistas são coisas pra acomodados, pra gente vagabunda (e do mal) que se nega a trabalhar, a buscar oportunidades. Assim como é mérito nunca ter sofrido preconceito, nem ter um trabalho negado por não ter se enquadrado no perfil de secretária loira, alta, magra e gostosa, visto que é isso que os clientes esperam no atendimento de uma empresa.

Gente do bem acredita que a oitava filha da “tia da limpeza”, negra, pobre, mãe aos 13 anos e sem enxergar pra si nenhuma outra realidade que não a da mãe, tem as mesmas chances e as mesmas oportunidades que todo mundo, afinal mérito é mérito, independente se a linha de partida for diferente.

Gente do bem trabalha em empresas onde todos são brancos, de boa família, magros(as) e onde somente os “auxiliares de serviços gerais” ou “trabalhadores de chão de fábrica” são negros, gordos, transexuais, etc. E é lógico que é uma questão de mérito.

Gente do bem sabe o preço de cada coisa que tem na casa de quem está visitando, enquanto as pessoas do mal se surpreendem com tanto luxo e ainda comentam que “isso é muito luxo”. Obviamente porque só as pessoas do mal dão bola pra isso, esses materialistas descarados... Enquanto as pessoas do bem só fazem os comentários quando estão sozinhas, em casa.

Gente do bem não admite violência, a não ser que seja contra gente do mal.

Gente do bem quer todo mundo que comete crime na cadeia, menos aquele tio querido que fez um “gato” na TV a cabo e possibilitou liberar todos os canais em vários pontos da casa.

Gente do bem diz que é errado estuprar. A não ser que o estupro tenha sido provocado por aquela vagabunda que anda sempre de roupa curta. Ou ainda, que isso aconteça com aquele cara do mal que foi preso e estuprado por outros 20 caras na cadeia.

Gente do bem diz que é errado matar. A não ser que seja com aquele negro que roubou a loja de roupas, aí se justifica espancar e até atirar ele no rio:

Gente do bem acha errado roubar, a não ser que seja pra sonegar imposto, afinal isso todo mundo faz e essa gente do bem faz “o mais leve da sujeira toda”.

Gente do bem vai a igreja e adora a Deus, mas não reconhece nada que é diferente da sua crença como verdadeiro:

Gente do bem ainda acusa quem é do mal, espanca e mata por causa de boatos na internet, ainda mais se for sobre sequestro e bruxaria:

Gente do bem acha que crianças (brancas e de boas famílias) merecem um estatuto da criança e do adolescente que realmente os proteja mas considera como “animais” os menores infratores, porque obviamente nasceram maus.

Gente do bem não é machista, mas diz que aquela cantora de funk da bunda grande é uma puta.

Gente do bem não é homofóbica, não tem nada contra homossexuais, mas prefere que se relacionem só lá no seu cantinho, onde ninguém vê.

Gente do bem não é racista, mas só se o negro(a) for muito legal, competente e for gente do bem também.

Gente do bem faz justiça, mas sempre de acordo com o seu ponto de vista.

Gente do bem sempre tem um “mas”. E na sutileza dos seus “mas, porém, contudo, todavia”, fazem o mal, mas só pra quem merece, já que essa gente do bem também tem poder de julgar e sentenciar como, quando e quem bem entender.

Gente do bem deseja tudo de bom, mas só pra quem gosta ou pra quem compartilha das mesmas ideias.

E é por essas e outras que eu me declaro, hoje e sempre, do mal.